Vinte e cinco anos separam Valter Canas e Manuel Coutinho, mas ambos têm uma ideia fixa: manter viva a tradição do Círio de Nossa Senhora da Arrábida.
A devoção chega-lhes como herança tal como a tradição marítima, explica Manuel Coutinho, filho e neto de pescadores que no princípio do século XX perdeu no mesmo dia dezassete membros da sua família no mar. Também Valter, filho e neto de pescadores pelas duas partes da família, perdeu o seu pai nas mesmas circunstâncias. Ambos assumem que perpetuar, ano após ano, o Novo Círio de Nossa Senhora da Arrábida é uma missão de vida que lhes foi confiada pelas gerações precedentes e que não pode ser perdida.
A história começa como uma lenda. Hildebrandt, um mercador inglês muito devoto de Nossa Senhora, vinha navegando junto ao Cabo Espichel quando se levanta uma grande tempestade que os coloca em perigo de vida. Desesperados, suplicam para que a tempestade cesse e o mar amaine. Passada a tormenta, viram uma luz brilhante passar sobre a Serra da Arrábida. Ao chegar a terra vão em busca da proveniência dessa fonte de luz que os guiou e encontram, em cima do penedo, a imagem da santa que Hildebradnt transportava na sua embarcação. O rico mercador torna-se então ermitão, despojando-se de toda a sua riqueza e mandando construir uma capela para honrar a Virgem da Arrábida e celebrar o que considerou ter sido um milagre. Pediu à sua tripulação que viesse visitá-lo em círio cada ano, trazendo consigo alfaias para ornamentar a sua ermida.
Tal como os mercadores, também os pescadores prestam esta homenagem até hoje. O antigo círio que, ano passado, completou cento e trinta anos, chegou a ser considerado a maior manifestação pública a sul do país.
“O mar é uma entidade. Sabe-se como se vai e não se sabe como se volta. Tendo em conta que os pescadores eram o sustento de toda a família, as mulheres pediam a Nossa Senhora que os trouxesse de volta com saúde e, após o regresso, iam regularmente pagar promessas”. Afirma Valter Canas.
Juntamente com o Senhor Jesus do Bonfim e Nossa Senhora do Rosário de Tróia, Nossa Senhora da Arrábida pertence ao apostolado do mar, Stella Maris, vertente de acompanhamento espiritual da tripulação náutica e das suas famílias. Cada imagem era outrora venerada por categorias socioprofissionais distintas: Senhor Jesus do Bonfim estava ligado à pesca do Bacalhau, Nossa Senhora do Rosário de Tróia aos varinos da zona das Fontaínhas e Nossa Senhora da Arrábida aos pescadores do Troino e Anunciada, que usavam artes de pesca distintas.
Quanto ao Círio Marítimo, após uma interrupção de 40 anos, graças aos devotos e à ajuda substancial e entusiasmo da União das Freguesias de Setúbal, retomou em 2015. A festa manteve-se sempre, mas o objetivo é o de dar mais força ao Círio Marítimo, alargando a participação. Também a alteração do funcionamento do Convento da Arrábida levou à adaptação das festividades, não havendo a possibilidade de pernoitar no convento como no passado.
O objetivo da Comissão das Festas – da qual Valter Canas e Manuel Coutinho fazem parte, juntamente como outras pessoas – para o futuro é atrair mais jovens para dar continuidade a esta tradição e conseguir alargar novamente as festividades para três dias, incluindo novamente a segunda-feira.
Para este ano fica o convite à população para participar nas celebrações com um programa que se estende entre dia um e dia nove de julho.
A chegada do Círio Marítimo a Setúbal está agendada para dia 9 de julho às 18h30 na Doca dos Pescadores e esperam contar com afluência da população.
A União das Freguesias tem mantido um forte apoio e empenho na revitalização deste evento, como forma de preservar as tradições da comunidade piscatória e incrementar esta atividade profissional.