Em abril celebrámos os 50 anos de um dos acontecimentos mais marcantes da nossa História Contemporânea. Chegava ao fim a ditadura mais velha da Europa e com ela implodia o último império colonial do ocidente europeu.
Em Setúbal viveram-se de forma intensa estes acontecimentos. Milhares de setubalenses saíram à rua armados de uma determinação irrevogável de colocar um ponto final no regime que caía pesadamente, sem convicção e sem arrojo.
A cidade erguia-se de novo, desatando nós, abrindo portas, percorrendo o itinerário feliz da liberdade.
A cidade cumpria, neste dia, o seu destino – tornava-se gente, gente que cantava, gritava, reaprendia a vida.
Foi na rua que abril se fez. Aqui e no país inteiro, as ruas foram casas generosas que se abriram hospitaleiras depois de encarceradas durante quase cinco décadas. Os céus de abril foram testemunhas diligentes e rigorosas dos dias que se viveram após o prodígio da derrocada: “Sexta-feira, dia 26 de um Abril glorioso. Dezanove horas na Praça do Bocage, repleta de uma multidão compacta, quase ainda incrédula com o momento que estava a passar” (Rogério Severino in O Setubalense de 29/4/4).
Para os jovens que nos leiam hoje na rememoração desta data mágica, não é fácil imaginar o Portugal de há 50 anos atrás.
Não é fácil imaginar que o seu destino aos 20 anos de idade, fosse a guerra de África, com os quatro intermináveis anos de serviço militar obrigatório e intransponível; não é fácil imaginar a censura, a proibição da reunião e manifestação, o viver sob o olhar felino de mil e um Torquemadas; o viver na sombra dos dias num país em que os partidos e os movimentos políticos estavam proibidos, as prisões cheias, os líderes oposicionistas presos ou exilados; não é fácil imaginar um país em que a greve era proibida e considerada um crime e o analfabetismo batia recordes europeus; não é fácil imaginar um país em que a miséria era considerada “normal” e a chave-mestre da economia era o baixíssimo salário dos trabalhadores; não é fácil imaginar um país sem direitos, nem garantias, sem saúde, sem Previdência, um país sem luz apesar de todo o seu sol.
E, no entanto, todo este passado mal vivido, naquele tempo sedimentado de medos, é um passado recente que urge não esquecer.
Setúbal cumpriu, como sempre, a alquimia abrilista da democracia. A intervenção cívica e cidadã dos setubalenses, revelou-se, mais uma vez, tal como se havia já revelado na sua participação nos movimentos liberais inspirados na bandeira da “liberdade, igualdade e fraternidade”; tal como se havia revelado no movimento nacional de indignação face à capitulação ao Ultimatum inglês; tal como se havia revelado ao ceder o seu espaço à receção do Congresso Republicano que preparou a via insurrecional para o fim do regime monárquico; tal como não esperou pela confirmação por telégrafo da vitória da República a ela aderindo de imediato e incondicionalmente; tal como se transformou na terra adotiva de José Afonso, que a cantou como a “cidade da utopia”.
Em 25 de Abril de 1974, de mãos entrançadas, passaram mais uma vez pelas ruas desta cidade multidões prodigiosas em marcha vertical e cidadã a anunciar um tempo novo…
Professor Doutor Albérico Afonso Costa